domingo, 12 de outubro de 2008

O que vem a seguir? (completo)


O que vem a seguir? (completo)
A crise financeira vai passar. Mais tarde ou mais cedo, com danos mais ou menos sérios, com mais ou menos vítimas... mas vai passar. Não é apenas a história que o diz, mas também a natureza dos processos evolutivos  que caracterizam desde sempre a realidade económica. Interessa olhar um pouco mais para a frente e começar a pensar no que aí vem. Infelizmente não é possível ser optimista para os próximos tempos. 
Partindo do princípio que da crise financeira não resultarão eventos demasiadamente graves como a queda de todo o sistema financeiro após corridas aos bancos ou falência de países ou grandes empresas - o que nos dias que correm é um pressuposto optimista - estimamos que os efeitos no consumidor apareçam já no final do ano. Os problemas poderão ser mascarados ou atenuados durante a época natalícia, mas aparecerão com toda a sua força a partir dessa altura.
Sem querer simplificar demasiadamente, o comportamento do consumidor depende essencialmente de 2 factores: rendimento disponível e confiança, sendo que o acesso ao crédito aparece como uma variável que pode condicionar ambos.  
Não há muitas razões para acreditar num aumento do rendimento. Nesta altura já há sinais muito claros de estagnação no investimento e consumo de bens duradouros - a paragem da Auto Europa é apenas mais uma evidência. Estes são indicadores leading da evolução económica. Os salários dificilmente subirão e as contratações deverão ser reduzidas ao essencial. Apesar da crise, não é líquido que os preços desçam, pelo contrário.
confiança dos consumidores já está a diminuir. Tudo indica que à medida que as empresas se forem debatendo com dificuldades de financiamento, os trabalhadores começarão a sentir os seus postos de trabalho em risco, ou pelo menos a progressão de carreira.
Prever dificuldades no acesso ao crédito quase não é uma previsão. Vai mesmo acontecer e de forma generalizada. Atingirá bancos, empresas, particulares e até o Governo.  O menor acesso ao crédito diminuirá o rendimento disponível e afectará a confiança já que os consumidores ficam mais inseguros e com menos opções em aberto.
Se este cenário se materializar, toda a economia entrará em sérias dificuldades e durante algum tempo. "Adivinhamos" que o retalho seja gravemente atingido nesta crise - provavelmente a principal vítima. Os retalhistas poderão adoptar uma posição de risk-takers, concedendo crédito aos consumidores, à boa maneira da década de 80 quando os bancos não se atreviam a apostar no crédito ao consumo e como hoje ainda se faz nos países emergentes. É uma saída arriscada, mas não parece que existam muitas mais!

2. A Economia [portuguesa]
Portugal é uma economia aberta que está sujeita aos ciclos económicos dos principais parceiros. O facto de existirem poucos mecanismos proteccionistas e de se integrar de forma quase plena em todos os grandes mercados (monetário, cambial, capitais, mercadorias e serviços) apenas ilusoriamente se traduz numa maior vulnerabilidade a um 'outlook' económico negativo. Pelo contrário, é a integração da economia portuguesa que permite que se vá ajustando de forma contínua, dificultando a ocorrência de choques mais graves como os que prevemos acontecer em economias de dimensão semelhante, mas mais rígidas e intervencionadas como as da América Latina.
Em face do sucedido nos mercados financeiros a nível global, o PIB mundial terá de ser revisto em baixa de forma substancial. O FMI fala num crescimento mundial de 3% em 2009, números que consideramos muito optimistas. É discutível se iremos sequer testemunhar um crescimento positivo a nível global no próximo ano.
Portugal não estará imune a este cenário. Em 2008 a economia deverá crescer em cima dos 1% (talvez abaixo), com um prognóstico muito reservado para o ano seguinte. Analisemos então cada uma das componentes do PIB:
Consumo Privado - Já analisado no ponto 1. Como já referimos as perspectivas não são animadoras. Esperamos uma forte desaceleração no consumo privado, sobretudo em 2009, com a enorme dificuldade na obtenção de crédito a piorar o cenário. Melhorias só no fim de 2009, sendo optimista.
Consumo Público - É uma enorme interrogação. A equipa do Ministério das Finanças deve estar neste momento com uma grande dor de cabeça ao pensar no orçamento de 2009. Nesta altura ainda não é certo que tipo de meios terá de aplicar no auxílio ao sistema financeiro e às famílias, neste ano ou no próximo. Por outro lado o modelo escolhido para as obras públicas passa pelas parcerias público-privadas, mas as actuais dificuldades de financiamento obrigarão o Estado ou a avançar com mais verbas ou a cancelar inciativas. A tudo isto acresce a imprevisibilidade das receitas fiscais para 2009. 
Investimento - Regra geral investir implica confiança e uma expectativa positiva quanto à economia no médio prazo. Em face de tudo o que se tem observado as empresas estão mais preocupadas em sobreviver do que em crescer e, por outro lado, mesmo os investimentos de reposição e modernização poderão ficar comprometidos por falta de financiamento ou de confiança. Pelo menos até meados de 2009 não é de esperar alterações neste cenário negativo.
Comércio Externo - Uma parte significativa do crescimento estava a ser conseguido pelo bom desempenho do sector exportador. A queda do euro ajuda os exportadores, mas os nossos principais clientes - Espanha, Alemanha, EUA, Inglaterra e França - estão no epicentro da crise. A paralisação na Auto Europa é um aviso do que pode vir por aí. A queda dos preços do petróleo deverá ajudar a  Balança comercial, mas a menor procura de produtos refinados deve prejudicar uma das exportações com mais peso. Dada a rigidez de grande parte das importações nacionais é de esperar uma evolução negativa no comércio externo.
Então o quadro é péssimo para Portugal? Em termos relativos nem tudo será mau porque haverá países em piores circunstâncias, mas seria irrealista traçar um panorama risonho para os próximos 12 meses. 
O país deve aproveitar precisamente o que muitos apontam como sendo uma debilidade - a sua grande integração, nomeadamente no euro. Será no quadro da UE e da UEM que Portugal se poderá destacar, caso garanta o normal funcionamento do sistema financeiro e da economia em geral. Daqui poderá retirar importantes dividendos no futuro.
Algo que seria seguramente impossível caso se tratasse de uma economia isolada, como o caso da Islândia - na bancarrota - bem exemplifica.

3. Os Mercados
Lembrando um texto do passado dia 11 de Setembro:
"A história é cíclica. A liberdade e a democracia estão a ser ameaçadas pelo regresso do autoritarismo. Os indícios são muitos e à vista de todos [...]  E às vezes o liberalismo também se "põe a jeito". A ganância e a fraca supervisão permitiram ao sistema financeiro aceitar riscos que hoje se pagam." 

A Regulação
É o tema "quente" do momento. Nesta altura procuram-se culpados para a crise e soluções simples, rápidas e eficazes. Sem discutir a pertinência de processos regulatórios mais fortes, parece claro que vão surgir, quanto mais não seja por exigência popular (e governamental). O caminhar para um ambiente de mercado menos liberal já não vem de agora e é coerente com uma tendência de maior autoritarismo a nível mundial. Tem-se notado uma certa tentação de os governos tomarem um papel mais interventivo nas economias. a actual crise oferece o terreno ideal para que tal suceda. consideramos que será cada vez mais díficil assegurar a independência total de entidades como os bancos centrais.
Ao nível do sistema financeiro é de esperar uma redobrada vigilância e legislação sobre a engenharia de produtos financeiros e sistemas de incentivos. Os activos das instituições financeiras, nomeadamente participações em empresas, serão mais escrutinados e as aquisições e alienações poderão mesmo ser alvo de validação prévia governamental. Os sistemas de rating, cujo carácter obsoleto veio à tona, deverão ser completamente modificados. Alguns aspectos de "Basileia II" serão colocados em causa - a crise ou acelerará a sua implementação ou o seu abandono. A regra do "mark-to-market" terá que ser revista de forma a prever situações extremas em que o mercado poderá não ter condições de formular um preço "razoável". De resto, a aplicação total do "mark-to-market" poderia levar à implosão do sistema.
Algumas destas medidas mostram-se hoje necessárias, mas não acreditamos que o futuro nos traga uma sistema financeiro mais eficiente e imune a crises desta ou de maior dimensão. 

Investimentos e tendências
Numa primeira fase é de esperar que os investidores passem a ter mais atenção ao risco de contraparte, até aqui muito negligenciado. Ou seja, importa saber, por exemplo num produto estruturado de capital garantido,  quem é o tomador firme do produto. Os riscos em geral passarão a ser mais valorizados, pelo menos durante algum tempo. O regresso às acções será paulatino e demorado, mas não nos parece que seja muito diferente de outros períodos da história. Os gestores de investimentos passarão a dar mais importância aos cenários menos prováveis. Tal implica a adopção de estratégias um pouco mais defensivas, sempre limitando as perdas.

Nestas alturas promove-se uma série de alterações com a expectativa que no futuro tudo será diferente. Não é isso que nos mostra a história. Mesmo que as medidas a ser tomadas venham a ter sucesso nos próximos tempos, será inocente pensar que não voltaremos a estar perante uma grave crise nos próximos 10 a 15 anos - o tempo necessário a que chegue aos lugares de chefia uma geração que ainda não sentiu verdadeiramente os efeitos de uma crise provocada pelo excesso.

Filipe Garcia - Mercado Puro - 9 de Outubro 2008

3 comentários:

Pedro Barbosa disse...

Este artigo é excelente. Obrigado Filipe.

Pedro Sequeira disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Pedro Sequeira disse...

Gostei muito do teu artigo Filipe. Contudo gostava de dizer que a liquidez é hoje um “bem” escasso a nível global e transversal a todos os sectores económicos, e portanto julgo que será muito difícil que o retalho, que está de uma forma geral em grandes dificuldades financeiras, mesmo os bons riscos, consiga colocar-se numa posição de Risk Taker. Os grandes problemas ainda estão para chegar à economia real e uma das saídas das empresas passará por gerirem melhor o seu capital (muito melhor), apostarem na modernização do seu negócio e encontrarem novos mercados que permitam diversificar o seu risco. Quem não conseguir sairá do mercado, abrindo espaço para quem merece estar e dando oportunidade ao surgimento de novos players. Mesmo os bons riscos já estão aflitos com as cobranças, os seus saldos médios estão a degradar-se a olhos vistos, quem não recorria a crédito está agora a dar os primeiros passos, e compram (e vão continuar a comprar) dinheiro cada vez mais caro (mesmo com a provável descida da Euribor a acompanhar a inevitável descida agressiva da taxa refi), portanto sou muito céptico que as empresas se coloquem numa posição de financiadores à moda dos anos 80. A profissionalização cada vez mais apurada na atribuição do crédito é um caminho sem regresso e assistiremos a maior rigor por parte da banca em geral, exigindo maiores e melhores garantias que mitiguem adequadamente os riscos de crédito. Aliás em “atalho de foice”, as mudanças estão a ser muito rápidas e acho que vai ter de haver novidades no Acordo de Basileia, que na minha opinião não incorporou bem o problema da liquidez e do destaque que ele actualmente merece. Um abraço.